quarta-feira, 30 de setembro de 2009

luto que não acaba

Márcia estava no canto da sala com a cara abatida de quem tinha chorado um luto forte, pesado e doído. Todos que chegavam para a aula iam até lá e a cumprimentavam. Nem todos a conheciam bem, mas sentiam e solidarizaram com a dor de Márcia pelo pai falecido.

Laura ficou no outro canto da sala, tímida, receosa, medrosa. Fazia o que podia para não ter que ir até lá e compartilhar um abraço com a colega. Não que ela seja mal educada, nada disso. Só que Laura não queria correr o risco de desabar em lágrimas no ombro de Márcia por seu próprio luto, o luto de um pai vivo, um luto obrigatório que empurraram pra dentro de sua garganta sem que ela tivesse tempo de perguntar o porquê exato. Mas luto é assim, né? Acontece sem hora, nem explicação fácil e duradoura.

Pensou pensou pensou e resolveu ceder (e quem sabe provar a si mesma que era forte?!). Na hora do intervalo, chegou no pé do ouvido da colega de classe (não queria falar alto e gerar inúmeras caras de interrogações e, depois que ela se explicasse, não desejava ver aquelas caras de dó) e lhe disse que entendia a dor dela muito bem.

- "Ah... você perdeu seu pai, querida?", falou Márcia, sempre doce, compreensível. Uma dama até do alto de sua dor.

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(foi esse o espaço do silêncio de Laura, uma quietude semelhante ao que ela sente no coração toda vez que pensa na palavra pai).

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E, ao despencar de seu silêncio, Laura se deu conta de que seu luto seria definitivo, mesmo com o pai vivo, respirando por aí em algum canto com uma mulher moderna e siliconada e filhos menos indagadores que ela.

- Não, Marcia. Meu pai ainda tá vivo, mas ele assassinou o pai que ele foi antes. Aí preferiu esconder a culpa pelo crime embaixo de algum tapete da vida e, junto com a culpa, eu também fui empurrada pra fora da vida dele.


E daí que Laura notou que tem feito um luto doído quase que constantemente. Já tentou ressucitá-lo, mas não pense que é simples assim. O morto não quer ressurgir.

Anotou então no caderninho da sua cabeça: "preciso deixar o luto de lado e fazer uma bela cerimônia de enterro". Só assim pra gente guardar apenas o que foi bom.

Fez disso sua oração diária e ficou numa boa (ou pelo menos acreditou nisso).

sábado, 26 de setembro de 2009

"Dona Marina olhou para trás e viu o filho saindo de dentro da mata fechada. Largou o peixe na bacia de alumínio, lavou as mãos nas águas do rio, enxugou-as nas pernas da bermuda que usava e correu na direção de Júlio, que continuava andando, sem pressa. Após o beijo carinhoso e o abraço apertado da mãe, ele sentiu-se protegido. Estava, finalmente, livre do inferno que era aquela vida em Xambioá. Tentou conter-se, mas não conseguiu. Chorou copiosamente, com o rosto colado ao ombro esquerdo da mãe. Apertava a boca com força, numa tentativa vã de abafar seu pranto. Chorou tanto que se sentiu fraco. Ao ver o filho naquele estado, dona Marina desesperou-se. Ela nunca vira Júlio daquele jeito."

do livro O Nome da Morte - a história real de Júlio Santana, o homem que já matou 492 pessoas, de Klester Cavalcanti

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com certa semelhança com o momento em que chego na casa da mãe.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

o que eu tenho hoje

A saudade é meu peito dizendo que não dá mais e hoje descobri isso da forma mais chorosa possível. É que não sei por que nem de onde isso veio, mas hoje lembrei de quando eu (ainda pequena) admirava você falando palavras difíceis, palavras adultas nas rodas de conversas ou até mesmo comigo.
E eu sempre queria saber o que elas significavam, qual eram os sentidos. Queria saber de onde elas vinham e porque você as usava em uns lugares e em outros não. Era como se as aulas de português da escolinha não me fossem suficientes e, por isso, eu queria mais.
Foi quando você me deu um dicionário, não querendo que eu parasse de lhe perguntar, mas que eu descobrisse sozinha o poder das letras, sílabas e palavras sempre que uma dúvida pipocasse na ponta da minha língua. O dicionário era pequeno como eu e já andava meio batido porque você o guardava no escritório. Imaginei que fosse de lá que você tirava aquelas letras adultas e lindamente sonoras. Adorei o presente e, com ele, eu fantasiava ainda mais o dia em que eu saberia o significado de todas as palavras do mundo, quando eu cresceria e poderia usá-las sem ter que abrir o caderno, como você fazia e (acho que ainda) faz.
E hoje eu tenho a maioria das palavras guardadas na cabeça, um monte de saudades guardadas no meu peito e ainda tenho aquele dicionário (junto com seu livro secreto de poesias que não deram certo) que você me deu.
Mas eu não tenho você... Entende?

falar demais pra fugir

"Por qualquer caminho que se possa pensar, me parece que o silêncio soa ameaçador. Em parte pelo que ele pode dizer sobre nós. Enchemos nossa vida de barulho, da mesma forma que atulhamos nossos dias de tarefas, com medo do vazio. Tarefas em uma agenda cheia constituem outro tipo de ruído. E o vazio também é uma forma de silêncio".

A coluna da Eliane Brum vem me inspirando já faz algum tempo... Ai ai. Vale a pena ler tudinho aqui .

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

"Deus que me perdoe, mas Ele poderia ter caprichado mais em algumas pessoas!"

da peça A Alma Boa de Setsuan, de Brecht, em cartaz no Tuca e temporada popular!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

3 passos...

... para bater a tristeza pra fora do peito quando ela insiste em deixar seus ombros e semblante cabisbaixos:

1. Vá à livraria mais próxima, compre um livro (se não tiver dinheiro, escolha qual você comprará quando cair o pagamento) e coma um doce. "Vai te fazer bem" - by Laris.

2. Se estiver no trabalho ou na aula, não exite em colocar braços pra cima e espreguiçar bem, separando vértebra por vértebra até elas se descolarem umas das outras. É essencial que você não se importe com o que vão pensar de você - não só quando espreguiçar, mas sempre.

3. Quando pegar um ônibus ou quando for caminhar até algum lugar, ligue seu iPod na música mais animada da playlist. Deixe seus ombros se embalarem com a canção e, se necessário, não tenha vergonha de cantar.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

divorciar coisas boas das ruins

Ontem vi uma cena que me chocou. Não porque tinha drama, lágrimas ou desespero, mas porque NÃO tinha drama, lágrimas e desespero.
Um homem de 37 anos com cabelos já se despedindo da cabeça, bigode farto e com cara de bem-sucedido na vida estava ligado a uma máquina de diálise - sim, aquele aparelho que a faz a função dos rins quando eles estão capengas e doentes. Os fios (já completos de sangue) daquela geringonça se enrolavam em seu braço até chegar a uma fístula, uma mini-maquininha que é colocada dentro do braço das pessoas pra facilitar o trabalho da máquina maior. Uma agulha gigante que, só de lembrar me causa tremedeira, vai até dentro da veia e tira tudo que é sujo e que já não combina mais com o sangue. Faz o divórcio do sangue e da sujeira - uma separação sem traumas. É uma rotina de 3 a 4 horas diárias, 3 vezes na semana - ritual sagrado sem o qual não dá praquele homem viver.
Não sei você, mas sempre imaginei um cenário desolador para uma cena dessas. Horas presa a uma máquina e a uma agulha ao lado de gente doente? É de dar medo... E o medo é uma casa aonde nin-guém vai. Mas não. O homem da minha cena estava tranquilo, lendo um exemplar do Valor de cabo a rabo e, eventualmente, checando mensagens em um celular moderno. Ou seja, o mundo estava prestes a cair do seu lado, com pessoas de semblante baixo, bandejinhas de remédios, cores de hospital e enfermeiros a mil... e o homem sequer se abalava, imerso num mundo que ele criou para aguentar o tranco das agulhas gigantes e do tal divórcio sanguíneo. Quando acabou seu ritual, se levantou, colocou o celular no bolso, dobrou o jornal e partiu com um sorriso de canto de boca de "missão cumprida - vamos em frente". E daí que me choquei com a falta de drama do homem, apesar das agulhas, do cenário e tudo o mais.
E eu achando que meus problemas eram imensos e irresolvíveis a ponto de pensar que nunca seria capaz de divorciar coisas boas e ruins. Se ele consegue sair sorrindo de uma sessão de hemodiálise, pronto para um dia de trabalho, por que eu não posso sorrir mesmo quando estou com problemas? Não conheço o malandro, mas ele me apontou que tudo vai dar certo. E o melhor: pelo menos eu não tenho uma agulha no meu braço!!

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

como a lua

Ajeitando os livros na prateleira nova de seu quarto, Laura deixou cair de sua mão um exemplar especial, que lia sempre em outros tempos. De dentro dele, voou um marcador colorido e, na página onde ele estava, havia um trecho do poema preferido da menina Laura de anos atrás assinalado com lápis:

"E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu..."

De Cecília Meireles, trecho de "Lua Adversa", em Flor de Poemas


E Laura se deu conta de que os poemas nunca perdem a atualidade, o gosto de agora, o cheiro do presente, por mais que a gente cresça!

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

quem concorda põe o dedo aqui...

"O utilitarismo quase sempre ama a mediocridade intelectual. Falemos a verdade: a mediocridade funciona. Ela gera lealdades, produz resultados em massa, convive bem com a estatística, evita grandes ideias. Enfim, caminha bem entre pessoas acuadas pela demanda de sobreviver"

Luiz Felipe Pondé, FSP 14/09/09, em artigo "Um relatório para Academia".

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

a rotina

Ela estava só o pó. O dia passou a forceps, como o pozinho de uma ampulheta. Ao longo das horas, apesar do escritório ser grande e arejado, ela se sentia entre paredes de aço, num quadrado sem ar e sem esperança. Sentiu frio, calor, medo, frio de novo. Não se sentia uma analista e sim uma barata (como a de Kafka ou aquela da paixão segundo GH) depois de falar e falar e falar novamente para o cliente que aquilo não seria adequado, que era perda de dinheiro e certeza de insucesso. Foi esmagada. Por que as pessoas insistem nos erros, teimam em bater a cara de frente com um muro? Qual é a dificuldade de entender? Gastou saliva à toa, claro. E o chão lhe faltou, assim como o ar, a paciência, a cabeça no lugar, o bom senso corporativo.
À tarde suas sombrancelhas cerraram-se, o coração parecia que tinha parado de bater, mas não parou - se parasse, na verdade, não seria má ideia, porque a levariam dali. Não aguentava mais a baboseira toda e não tinha uma porta de emergência ao alcance.
Queria fugir, sim, mas o problema era mais profundo: ela não sabia pra onde. Um misto de melancolia e vontade de jogar tudo pro alto pra fazer algo que realmente lhe traria algo efetivo ou algo que não lhe faria pensar pensar pensar. Quem sabe ser astronauta e ficar sozinha lá no espaço? Ou ser babá só pra ter clientes que não sabem falar direito? E se ela se tornasse redatora de horóscopos? Motorista de táxi? Professora de digitação?
Tentou explicar pra alguns colegas o que sentia, mas falhou. Ninguém tinha o mesmo parafuso (ou a falta dele) que ela e ninguém podia entendê-la. Mas, como tudo que começa termina, o dia acabou e ela pegou o ônibus pra casa. Não pôde mais segurar e chorou. No ônibus lotado, o ombro de um homem bem alto estava perto de seu rosto. Ela precisava de um ombro e pensou em emprestar o dele. Mas achou melhor não. Chegou em casa sem olhar pros lados, lá não tinha ombros, mas tinha seu travesseiro. Deitou, enquanto ainda escorria uma última lagriminha de desespero.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

mais uma prece

Eu queria que todas as minhas ilusões não estivessem perdidas, assim como as esperanças de conhecer um ser humano mais honesto, sensível e deslumbrante. Queria relar no sol sem queimar a mão, não ter medo de vender meu peixe sem que os outros achem algo de mim, nem de expressar tudo o que explode peito afora. Queria sentar com Deus e perguntar a Ele a verdade sobre algumas verdades. Queria poder dizer para algumas pessoas o que há de errado, ser menos corporativa e mais sincera com todos, pra tentar deixar tudo em pratos limpos. Queria não jogar tinta nos planos que fiz no passado, não me arrepender de coisas que disse, fiz e faria. Queria não me machucar sempre que caio e não poupar palavras pra dizer o que sinto, e não me magoar tanto sempre que um alguém pisar (in)diretamente em minha honestidade. Queria ver menos coisas erradas e ter mais atitudes decisivas quando as vejo. Queria ler mais livros e ouvir mais músicas ao invés de passar horas no trânsito sem ânimo e infeliz, ou no trabalho que, muitas vezes, me deixa travada, longe da criatividade e da felicidade. Queria sorrir sem medo e ter a certeza de que vou ter um sorriso de volta sempre. Acima de tudo, queria que você fosse sincero e olhasse nos meus olhos pra dizer que tudo o que vivemos foi em vão, que você não me ama e que não espera nada de mim.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

- Dona Vereda (!?), sabia que isso aqui já foi tudo muito chique?! Parecia o Morumbi - disse o taxista enquanto passava por uma das ruas feias e estreitas do Jaguaré, naquele calor insuportável.

- É mesmo? Mas é tudo tão feio hoje... - respondi desatenta ao que se passava.

- É... as coisas sem-pre mudam pra melhor ou pra pior, mas sempre mudam. - Falou me chacoalhando por dentro e me fazendo pensar.