domingo, 30 de agosto de 2009

a arte de se acostumar

A gente se acostuma a ler o jornal no ônibus para não perder tempo. A gente se acostuma a não tomar café da manhã para dormir mais dez minutinhos. A gente se acostuma a ir até a área de serviço para estender uma roupa e não olhar pela janela para apreciar a vista mesmo quando é uma vista simples. A gente se acostuma a dar bom dia sem sorrir e olhar pras pessoas, porque precisamos ligar o computador logo e responder aquele email logo. A gente se acostuma a não prestar atenção quando falam com a gente, porque temos que terminar aquele texto e não podemos parar um minuto.
A gente se acostuma a ganhar pouco por nosso trabalho que só aumenta. A gente se acostuma a fazer um trabalho que já não nos deixa com aquele brilho nos olhos, só porque precisamos da grana. A gente se acostuma a tomar bronca de cliente quando estamos certos e não podemos reclamar porque ele é o cliente.
A gente se acostuma a ir de elevador, porque escada cansa. Se a praia está suja, nos acostumamos a molhar apenas a pontinha dos pés. Se o tempo está feio lá fora, a gente se acostuma a ficar em casa, porque não tomamos mais banhos de chuvas como antigamente. A gente se acostuma a pagar muito pelas coisas por estarmos na "cidade grande". A gente se acostuma a comer rápido aos sábados e domingos também. A gente se acostuma a não ter paciência na fila do supermercado de domingo - mas é domingo, porra! A gente se acostuma a comer mal só porque aquela comida boa demora pra ser feita, suja louça. A gente se acostuma a tomar refrigerante porque aquele suco de maracujá preferido dá trabalho de ser feito. A gente se acostuma a ver guerra e sangue nos noticiários, sem nos perguntarmos o porquê de tudo aquilo - e a gente se acostuma a tachar de chato quem fica se perguntando sobre isso.
A gente se acostuma a não olhar as pessoas nos olhos pra não ter que enfrentar um ou outro sentimento. A gente se acostuma a achar que é clichê falar de amor e achamos demodê uma pessoa que fala sobre ele aos quatro ventos. A gente se acostuma a amassar feridas, brigas, rancores pra dentro do coração pra não ter que encará-los sempre. A gente se acostuma a conviver com farpas que trocamos com os outros. A gente se acostuma às pessoas que têm inveja da gente, sem buscar respostas pra um sentimento tão solitário, sem tentar resolver e esclarecer as coisas. A gente se acostuma a falar mal dos outros, mas não podemos nos olhar de dentro e ver o que está de errado com a gente. A gente se acostuma a afastar alguns sonhos pro canto da sala pra não termos que trombar com eles sempre.
A gente se acostuma a se acostumar com tudo isso, sem nos perguntarmos para onde vamos... A gente se acostuma, a gente se acostuma...

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

do dia

"Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor, cadêêêê você?
Eu acordei, não tem ninguém ao lado".

Adriana Calcanhoto

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Ps 1 - Ontem pensei em você, enquanto uma lágrima escorria sobre uma foto nossa juntos.
Ps 2 - Onde tudo isso vai dar?
Ps 3 - Queria ir embora de mim a pé, mas não consigo. Oi?

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

"La gran literatura está para clavarse en nosotros, lectores, como un puñal en la barriga, no para adormecernos como si estuviéramos en un fumadero de opio y el mundo fuera pura fantasía"

Pilar del Río, sobre o novo livro de Saramago, Caín, que será lançado em outubro.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Laura tem o vício de livrarias. Sempre que pode, dá uma escapulida pro outro lado da rua onde trabalha, na livraria que tem cara de supermercado de livros. Vai, exclusivamente, para folhear, sentir o cheio de gente mexendo com os livros, observar os olhos de quem engole linhas e linhas de texto de uma vez, mirar toda aquela imensidão de letras e vírgulas e parágrafos e pontos que poderiam dar várias voltas ao mundo se colocados lado a lado.
Gosta de exercer seu vício de preferência com nenhuma ou quase nenhuma companhia ao seu lado. Na verdade, a companhia ideal é o ambiente, a luz baixa, a estante cheia e, com sorte, um sofá que aconchegue sua vontade de sumir no mundo raptada por palavras. Sozinha, Laura tem um silêncio que ajuda a tornar o vício ainda mais excitante, mais revelador.
Faz pouco tempo, ela pegou a irresistível mania de ler dois capítulos de um livro a cada nova escapulida. Chega, retoma o livro de ontem, encontra a página onde parou e esquece o mundo ao redor. Quando acaba um, já elege o sucessor e assim vai. A vontade de engolir tudo o que pode de romances, poesias e histórias é tão grande que Laura já leu muitos exemplares. Termina um, começa outro e assim por diante.
Nessa rotina que não tem nada de rotina, Laura só pensa em um dia poder morar dentro de uma livraria, casar dentro de uma livraria, educar seus filhos dentro de uma livraria. E só pensa em como isso seria bonito.


Um vício de encher os olhos

sábado, 22 de agosto de 2009

Lembra de quando, no inverno, você esquentava nossa cama com o ferro antes da gente deitar, só pra não termos que dormir na cama gelada? E do medo que eu tive quando você machucou a mão com a panela de arroz e ficamos na casa do vizinho enquanto você foi para o hospital? E de quando eu te liguei ansiosa porque ia viajar sozinha pra Nova York e você me disse que "cidades grandes são para mulheres grandes" e que era pra eu não ter medo de nada que tudo ia ficar bem?
Agora o tempo te dá mais uma primavera e todas essas lembranças apareceram com mais força... E, mesmo em anos de convivência, ainda me impressiono com a capacidade que esse tempo tem de te deixar ainda mais bonita. Você e sua elegância de mulher, seu cheiro característico, sua força pra transformar os problemas em uma coisa menos doída de se levar apesar dos pesares...
E hoje eu só quero que você seja feliz, porque, se você for, eu também serei sempre! Feliz aniversário, mãe. Te amo sem caber de imaginar, até o fim raiar.
Sua filha "paulistana"

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

a perseguição das orquídeas

Sim. Não sei o porquê, mas orquídeas estão me perseguindo hoje.
A caminho do trabalho, no ônibus cheio de pessoas sonolentas, um homem caminhava pelo corredor para garantir que nenhuma pessoa machucasse as pétalas brancas e lilases das orquídeas que desfilavam em três caixas com selos de Holambra. Achei interessante vê-las desfilando pomposas rumo à Paulista, com um certo gingado dos talos que fazia sambar as pétalas. Não sei para onde ele as conduzia, mas elas me ajudaram a lembrar que tem coisas lindas na vida, mesmo no meio do caos que é isso aqui.
A segunda visão foi na esquina do metrô Consolação. Enquanto atravessava a rua, um homem segurava uma orquídea branca em uma embalagem amarela, toda preparada para presente com um cartaozinho que, suponho, carregava muitas palavras bonitas endereçadas a alguém. E, novamente, a flor desfilava pra mim, elegante, exótica. Mas isso não tinha sido suficiente para eu perceber que estava sendo perseguida. Durou pouco tempo.
Agorinha, no telefone, vi a moça da limpeza trabalho passar no corredor com um vaso lindo na mão. E o que tinha plantado lá? Uma única orquídea branca que agora se exibe na entrada da empresa, saudando todas as pessoas que entram ou se vão.

O que será que isso quer dizer?

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

"Acredito ainda nas mesmas coisas. Ainda acho que a dignidade do homem é inseparável das intenções e dos fins a que ele se propõe. Só que, entre as intenções e os fins, quase sempre temos de passar por uma série de mal-entendidos".

do livro Campeões do Mundo de Dias Gomes

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Malditos mal-entendidos!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

"Um espírito doce e ao mesmo tempo maligno palpitava na delicada forma de suas pernas, de seus braços, de seus seios suaves. Uma inteligência sutil e diluída na cálida superfície da pele perfeita. Algo que nunca transparecia em seus olhos. Aquele apelo do espírito que nos atrai nas pessoas excepcionais, nas obras de arte".

Personagem de Andreia em Nada, de Carmen Laforet

rain drops

Hoje o dia nasceu chorando e, enquanto as gotinhas de chuva brincavam na minha janela, algumas lembranças voltaram a escorrer sobre mim. E eu, deitada e amanhecendo, pensei no dia chuvoso que você me deixou ficar em casa ao invés de ir pra escola. Entrou no quarto, me beijou, passou seus dedos de pontas quadradas pela minha testa, varrendo minha franja dali, me perguntou se estava melhor. É que eu tinha tido um pesadelo e tinha acordado com um choro ofegante pulando da minha garganta.
Só que hoje em dia, quando o dia pipoca chuvoso depois de um pesadelo (como hoje), não tem você pra me dizer pra ficar na cama, não tem essa compreensão delicada, não tem nada. Tenho, sim, que ir trabalhar, viver, sem ter tempo pra consolar o dia choroso.
E ainda não deu pra parar de doer isso. Mas em breve... quem sabe?


rain drops

domingo, 16 de agosto de 2009

prece por nós

E o tempo marcou mais uma primavera pra você. E eu passei o dia com o olhar perdido por aí, procurando alguma coisa que não sabia onde estava.
Não senti vontade de comer, sair, beber, me divertir. Mas também não quis te ligar e não deixei escorrer sequer uma lágrima.
Tenho medo de estar perdendo as nossas boas memórias e a vontade de te reencontrar... Me ajuda, Deus.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

"De repente ela percebeu que o amor era o instante em que o coração fica a ponto de explodir".

Lisbeth Salander, em Os Homens que Não Amavam as Mulheres, de Stieg Larsson

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Quando eu me pergunto se você existe mesmo, amor
Entro logo em órbita do espaço de mim mesmo, amor
Será que por acaso a flor sabe que é flor
E a estrela Vênus sabe ao menos porque brilha mais bonita, amor

O astronauta ao menos viu que a Terra é toda azul, amor
Isso é bom saber, porque é bom morar no azul, amor
Mas você, sei lá, você é uma mulher
Sim, você é linda porque é

Vinícius de Moraes e Baden Powell

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Eles realmente sabiam como encantar uma mulher...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Minha vontade é a de tirar a roupa das palavras, deixá-las nuas, distantes de qualquer lenga-lenga. Gritar pra todo mundo ouvir umas e outras verdades e dizer que, antes de mais nada, quero uma felicidade de deixar os dentes brancos. Assim, quem sabe, essa sensação de que meu coração vai explodir não some?

Respostas para: ferreira.verena@gmail.com

Obrigada,

domingo, 9 de agosto de 2009

carta de um ex-pai

Hoje amanheci com aquele amargo no meu sangue, um azedume que tenho tentado evitar. É que hoje é dia dos pais. De pais que amam seus filhos; pais que não só os assistem crescerem, mas que participam de suas vidas, mesmo que de longe, apontando caminhos quando o assunto é queda. Tem também os pais que se vão por motivos, muitas vezes, inexplicáveis - alguns partem e deixam feridas grossas e doídas; outros têm tempo de ensinar algo precioso e deixam esta vida com a missão cumprida. E há pais com eu: vazios, insensíveis e incapazes de exercer essa tarefa que a vida lhes deu.
É que eu decidi, simplesmente, não ser mais pai de ninguém. Ordenei aos meus filhos que ficassem longe de mim o suficiente para que eu pudesse ter outra vida. Deixei-os ao deus dará, escurracei-os de mim. Sou um ex-pai.
Não me julguem, não sou uma pessoa má. Eu apenas não sei o que fazer com o amor que eles me oferecem. Não tenho a receita de como usar o carinho que querem me dar. Não me sinto capaz de protegê-los o guiá-los quando me pedem ajuda. Não não não. E, com os anos, fui me tornando cada vez mais amargo e duro de roer. Nem o amor deles foi capaz de impedir que eu me transformasse nisso que sou hoje.
Depois de pedir a retirada de todos que eu julgava necessários, apostei minhas fichas em uma nova espécie de família. A vantagem é que essa nova família só sabe do meu passado aquilo que eu contei, com ajustes mais do que precisos. E essa minha nova família me satisfaz.
Só que, mesmo assim, continuo com um gosto acre na boca, quando em dias especiais me pego pensando em tudo que estou perdendo da vida dos meus filhos. É um azedo que sobe pela garganta e não deixa nem passar o café da manhã. Mas acho que é melhor assim...
Só sei que eu não queria existir em mais este dia dos pais.
Definitivamente eu não mereço ser chamado de pai.
** Qualquer semelhança é mera coincidência.
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Eu diria que as memórias são a melhor coisa que temos na vida. Elas não podem ser arrancadas ou queimadas da nossa cabeça. Ufa! Por isso, pai, onde você estiver agora, saiba que te amo!
A memória cola fragmentos de várias porcelanas no mesmo vaso
Drummond

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Sei, que o vento que entortou a flor passou também por nosso lar e foi você quem desviou com golpes de pincel.

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Sei que a saudade de você me dói.

sábado, 1 de agosto de 2009

Mais uma vez acordei com a Saudade de Você me chamando. Ela gritava memórias de nós dois enquanto cheirava flores que plantamos no passado juntos. Ela gritava com urgência e seus gritos fizeram acordar meu amor por você - um amor que tenho tentado manter apagado pra não me machucar.
E agora, acordado, esse sentimento quer me convencer a ir atrás de você e dizer que eu te amo mais que todas as minhas músicas preferidas e mais que as fotos que guardo na segunda gaveta do armário.
Todo final de semana sozinha, acampada na sala, é assim. E eu fico torcendo pra que o tempo passe logo e esse dia-dói-dia-passa acabe logo.